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sábado, 4 de janeiro de 2020

O farol, a palavra e um filme

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Robert Pattinson

Gosto de filmes que tratam da solidão, ou melhor, de como o homem trata solitariamente de sua vida.  Em um mundo como o nosso, as situações de solidão mesmo, daquelas que não há vivalma ao redor, são muito raras , involuntárias e ocasionais.  Vejo boa parte de alunos, estudantes em minhas cadeiras ou pelos corredores da universidade, solitários a ponto de não conseguirem expressar opiniões por palavras audíveis mas esperarem dos outros a reação para suas próprias necessidades.  Ou mais, simularem sua comunicação com os demais através de intermediários eletrônicos, como se a trama de algoritmos, fios, ondas de tecnologia de comunicação etc pudessem filtrar suas ideias e, mais, concatenar algo com algo, dando sentido como resultado. Nesse caminho, a dispersão das ideias diante do alcance da tecnologia tropeça naquilo que - pessoalmente - se percebe imediatamente: uma conversa, um diálogo, o encontro e a troca de ideias precisa de repertório, de conhecimento, de sonhos.  De ter o que falar e interessar a outrem.  Partimos do pressuposto que precisamos trocar palavras para sobrevivermos, das cavernas aos celulares...as pinturas ruprestes e as mensagens pelos i-phone, e-mails, redes sociais.. faz parte de nossa sobrevivência nos aliarmos a aqueles que nos troca palavras por palavras, sob o risco de nos afogarmos no isolamento, de não conseguirmos seguir vida.  Me arrisco em dizer que quanto menor o poder do conhecimento, mais a necessidade de nos escondermos atrás de uma máquina para simularmos a conversa que não temos por simples ausência de conteúdo.  Justamente aqueles que não alimentam esse conteúdo, de conhecimento, precisam da companhia de outros e mais outros, sob o risco do esquecimento...de ser colocado de lado na sociedade.  De orelhas em pé no metrô, ruas e lugares públicos, é fácil observar que a tecnologia que levou milhares de anos para chegar ao homem comum, full time, não é utilizada prioritariamente utilizada para a troca de experiências de vida, mas a dispersão da superficialidade cotidiana...expressada em linguagens criptografadas, abreviadas e baseadas em dialetos que fogem inclusive do teor da raiz da língua mater original.  Por ausência de uma grafia, os homens das cavernas pintaram suas experiências e histórias nas paredes das cavernas...o homem moderno, escondido atrás de aparelhos "supostamente" telefônicos, que comportam serviços alternativos da própria comunicação, primam pelo entretenimento que simula o conhecimento, dando espaço para o retorno comunicacional através de mensagens pré-elaboradas e midiáticas. A comunicação agora agrupa em segmentos, através de uma linha maior e superior de ideias generalizadas.  O contato externo, ou seja, com pessoas originárias  de experiências distintas, somente é feita através de uma linha geral compreendida por palavras, imagens e ideias filtradas pela complexidade tecnológica, cada vez mais próxima da inteligência artificial.  A palavra para expressar o amor não é o bastante para satisfazer a comunicação contanto que seja acompanhada por audio, cor, movimento...algo a mais do que o preto no branco da folha de papel... O livro, um bom livro, é o bastante para a ideia ser transmitida, mas o filtro tecnológico transformou essa experiência de compartilhar a comunicação atingida individualmente como insuficiente, por ser acompanhada pela necessária construção do imaginário. As palavras tem origem na imaginação, na avaliação e o diagnóstico daquilo que cerca o indivíduo.

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Dafoe, o dono do Farol e das palavras

 Um homem habitante da floresta amazônica pode tropeçar e morrer atropelado em uma grande cidade, justamente por não ter em si as palavras que o avisem da experiência do trânsito, mas tem o repertório cultural - pequeno, insignificante diante do conhecimento humano universal - suficiente para mantê-lo vivo, em contato com seus iguais...e transmitir o suficiente para as gerações que o sucederão.  O homem em grandes cidades, também tem o grau de conhecimento necessário para sua sobrevivência, com a diferença clara que o ambiente urbano o traz para a dependência menor de seu próprio conhecimento individual, transpondo e exigindo para aqueles que compartilham do mesmo espaço a responsabilidade da troca de ideias.  A convivência em cidades exige o respeito à regras produzidas - e somente a comunicação complexa da troca de ideias - justamente para não haver mais a necessidade de se pensar o ritmo da vida - regido pelas palavras - seguidas vezes, por grupos e indivíduos diferentes e distintos.  Elas existem, pronto, estejam certas, erradas, defasadas ou não...existem.
Estranho que escrevi isso para comentar um filme que assisti, uma obra polêmica por si, que originou filas para ser assistido em uma mostra e que pude ver tranquilamente em uma sala praticamente vazia.  O nome dessa película de 2019 é "O Farol" e foi dirigido por Robert Eggers.  Diz a sinopse (adorocinema.com): "Início do século XX, Thomas Wake (Willen Dafoe), responsável pelo farol de uma ilha isolada, contrata o jovem Ephraim Winslow (Robert Pattinson) para substituir o ajudante anterior e colaborar com as tarefas diárias.  No entanto, o acesso ao farol é mantido fechado ao novato, que se torna cada vez mais curioso com esse espaço privado. Enquanto os dois homens se conhecem e se provocam, Ephraim fica obcecado em descobrir o que acontece naquele espaço fechado, ao mesmo tempo em que fenômenos estranhos começam a acontecer ao seu redor."

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Um duelo de interpretações 

Em alguns textos, o filme, em preto e branco, foi apresentado como um "terror psicológico", mas discordo... afirmo ser uma experiência da solidão....aquela que inicia esse texto, de dois indivíduos que criaram seu mundo e suas regras e suas palavras... Nos créditos está a razão: os diálogos foram criadas a partir de relatos colhidos em diários dos faroleiros...daquilo que aqueles homens solitários, que passavam períodos enormes isolados da humanidade, deixavam descrito para o mundo... Imagens que usavam, criados pelo imaginário construído pela necessidade de cuidar de si sozinhos, sem depender de ninguém, enfurnados em ilhas distantes cercados por mares tormentosos.  A alma daqueles que morreram no mar estão (re)encarnadas nas aves marinhas, tritões e sereias nadam nas ideias e até no desejo sexual, solitário, ao ar livre ou no esconderijo de um quarto com goteiras.  A solidão não tem o colorido de um filme contemporâneo... Os homens constroem suas ideias sem precisar trocá-las com outros...o diálogo de regras e imposições se chocam com ideias originais e tudo se volta para a sobrevivência.  Sozinhos, criamos nosso mundo imaginário da comunicação, ainda que tênue e ocasional, como uma barca que não parece para substituir os ocupantes do farol...e da necessidade e a intenção de cada um para estar no isolamento voluntário.  Segredos, segredos, segredos... como tê-los? estar solitário significa ter razões para não precisar trocar ideias, de viver não contando com o outro, ou com a ideia do outro.  Vive-se por si, com seus monstros, sereias e motivações...se é a própria história, a própria jornada, a própria vida.  Não se depende da imagem, da palavra ou do simulacro de uma comunicação internética....sem rosto ou conteúdo pessoal, mas sim daquilo que é a própria raiz de si, sua construção e sentido pessoal.

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O farol, a solidão e a construção pela palavra

Todo esse texto escrevi voltado para o filme que assisti.  Dafoe é magnífico em qualquer desafio cinematográfico, Pattinson me surprendeu, pois me lembrava dele das experiências medíocres do Crespúsculo...a disputa em cena entre os dois é sensacional e quase sem palavras.  Assim, como sempre, a palavra é necessária...vale a pena assistir.

O trailler é esse:
https://www.youtube.com/watch?v=aJoGdiyvdYs

Um comentário:

  1. Muito interessante, vou tentar assistir! ...o seu texto, muito bom como sempre! Vejo a solidão como uma companhia necessária, às vezes. De certa forma aguça o repertório filosófico de cada ser!

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