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quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Passado, amigo e perdas



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Chico

Na última mensagem que recebi do Chico, ainda no semestre passado,  ele encerrou dizendo que eu o fosse encontrar, que queria conversar pessoalmente comigo, que eu fazia falta... respondi com um evasivo "um dia, mais para frente"...  sequer fiz planos. Mensagens posteriores que enviei não tiveram retorno... Suas diabetes já estavam complicadas quando falou comigo, tinha até perdido um olho, mas continuava a sussurrar de um mundo melhor, do paraíso que encontrara no litoral para caminhar e, finalmente, se tratar.  Tinha coerência: alguém que lutou a vida inteira pelo coletivo, abrindo mão da própria saúde pelos outros, ama a vida.  Como as comunicações eram sempre espaçadas...deixei passar.  Me disseram que ele não apareceu em um encontro de ex-militantes da ALN-Molipo em dezembro...pois estava impossibilitado de viajar.  Já definhava.

A imagem pode conter: Francisco Romero, sorrindo
Que repouse em paz

Perdi esse amigo...e principalmente agora, com a sua perda, sei pela tristeza que me acometeu que era um amigo.  E me arrependo de não ter largado meus afazeres e ido ao nordeste. Não sei quando morreu, deve ter sido há poucos dias. Trato a morte da forma mais rotineira possível, quase a ignorando, como se fosse uma viagem, um passeio...  Quero pensar que pessoas queridas não desaparecem assim, com a parada do corpo, mas ficam transitando, passeando, fazendo as coisas que nunca puderam e desejaram fazer.  Um dia, espero, espero encontrá-las.  Com o Chico ou Francisco Romero, é assim.  Me falou que trabalhava com pescadores, jangadeiros se não me engano. E com populações pobres, miseráveis, esquecidas pelo Estado e por governos... Eu o conheci na luta, pouco depois de retornar do exílio, na década de 80,  quando me tirou da redação do Diário de Piracicaba, já extinto, para trabalhar em um projeto de comunicação inserido em um programa de educação popular, na periferia de Piracicaba, criado pela reitoria da Unimep - Universidade Metodista de Piracicaba em convênio com organizações europeias. O horizonte de trabalho do núcleo era enorme: desde a educação popular propriamente dita, suas ramificações, comunicação popular, cadernos de formação, cursos e militância direta nos setores dos favelados, mutuários...na verdade, bastava ser oprimido para se ter um lugar ali.  Chico, que era o coordenador do projeto todo, era rígido no estar ao lado dos oprimidos, explorados...desalentados.  Era um revolucionário, com certeza.  Os projetos que coordenava se baseava na transformação social, ainda que com viés religioso, cristão e ecumênico.  Defendia a fé como instrumento e, muitas vezes isso era pauta de discussões informais. Não havia briga, mas contraditório. A religião era o ópio para alienação do povo ou o narcótico para seu sofrimento? A teologia da libertação era o eixo de sua intervenção política...que eu saiba, nunca abriu mão da religião para alimentar seu conteúdo diário.
Mencionava seu passado guerrilheiro com cautela, secundarizando a aventura militarista da esquerda e ressaltando o trabalho de formação política...a ditadura militar estava caindo de podre e defendia que seria o momento (na ocasião) para se organizar um país mais justo.  Incrível que, depois de tantos anos, falava que faltou auto-critica à esquerda pelos erros cometidos no governo.  Ele queria discutir panoramas, cenários...num período que o fascismo tomou conta do Planalto, devia se contorcer de agonia e creio que o idiota presidencial potencializou sua doença. Vai para a conta do Bozo.
Temos de termos retornado a comunicação, depois de décadas, ainda tenho livros que me foram dados por ele, todos envolvendo a luta social e a religião ou a igreja cristã, seja católica e/ou protestante...Me contou sobre Camilo Torres, o cura colombiano morto em combate ou sobre a estrategia de Nguyen Giap, o general de Ho Chi Minh, para - no comando de um exército de gente pobre, com sangue ralo de anemia - colocar o exército mais poderoso do mundo para fora do Vietnã. Contava o exílio, sua experiência de vida, aconselhava.  Seriamente, se aborreceu comigo quando disse que queria ir para a redação de um jornal: tratou isso como quase uma deserção da luta... Me afastei dos projetos e de cidade...estava em São Paulo, creio que em 1996, andando pela Avenida Paulista (trabalhava por lá) quando, ao atravessar a via, o Chico, dentro de um carro, buzinou... Passou e eu segui caminhando.  Uns dois quarteirões à frente, Chico me abordou...havia estacionado o carro e me procurado entre a multidão.  Encontrou.  Me perguntou como estava, o que fazia e o que tinha em mente...coisa rápida.  Nos abraçamos e ele sumiu entre os transeuntes.
Agora sento e penso no que conversamos...sempre que podíamos... ele confiou em mim, repassou sua experiência e me afastou de problemas.  Esteve presente em momentos ruins e me deixou livre em bons momentos.

Pedagogia do Oprimido era o livro de Paulo Freire disputado em teoria...ele criticava colegas de trabalho que expressavam apoio ao método mas matriculavam seus filhos em escolas privadas, de ensino convencional. Seu filho (Cauã ou Iatã, algo assim) era medonho, um moleque que enervava qualquer um de tanta arte, de tanto ir a aulas de ensino para adultos, foi alfabetizado por tabela...
Provavelmente me lembrarei de mais coisas desse contato com o Chico e da convivência que tive com ele... Perdi um amigo...devia ter ido ao nordeste atrás dele.

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