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segunda-feira, 2 de março de 2020

Agora sei que não se cala um poeta

Ernesto Cardenal


O poeta, enfim, morreu...depois de me assustar em novembro passado, ele se foi ontem, domingo... Seu coração, enorme a ponto de abrigar uma vida de solidariedade, compaixão e poesia, deixou de bater. É um descanso necessário e justo para um guerreiro da palavra e ação.  que o diga os poderes que enfrentou e enfrentava...da ditadura somozista ao governo incerto de Daniel Ortega. Respeito pouco o papel de religiosos já que representam empresas que exploram a fé, mas ao poeta que nos deixou não consigo ter qualquer receio de desejar que ele esteja hoje ao lado do criador, aquele que ele dedicou sua vida...que colocou o livre arbítrio na direção de tornar esse mundo melhor.  Ele arriscou sua vida inúmeras vezes, milhares de vezes.  Às vezes, imagino que ele confiava tanto, muito na existência de D'us a ponto de se expor aos opressores.  Mesmo que eu não concordasse com algumas coisas que ele falava ou defendia, creio que seu passado e sua figura presente no dia-a-dia de seu povo o tornava um sujeito que não podia ser mais julgado pelos homens.  Alguns amigos sandinistas o criticavam, muito, por deserção e até traição...rompi com eles, amizades antigas se desfizeram. Não me arrependo: o poeta merece isso.  Ele manteve a rima e os versos vivos para embalar a resistência.  Triste do povo que não tem seu poeta...Os Estados Unidos teve Walt Whitman; A União soviética Maiakoviski; o Brasil, Drumond, Vinicius e Andrades...a pequena Nica, o seu Cardenal...
Que repouse em paz, poeta....seu trabalho não te cala nunca, sempre imaginarei a garota com calças, em alguma estrada norte-americana, vista de dentro de um ônibus da Greyhound.  
Ferre-se o Papa João Paulo II (que o ex-comungou) e Daniel Ortega (que o hostilizou e agora decreta luto de 3 dias)...

AO PERDER A TI

Ao perder-te
Tu e eu vamos perder:Eu porque tu eraso que eu mais amavaE tu porque eu erao que mais te amavamas de nós doisTu perdes mais que eu:Porque eu poderei amar a outrosComo amava a ti,Mas a ti não amarãoComo eu te amava


SALMO DO HOMEM QUE VÊ A REALIDADE E NÃO SE CALA

Ouve, Senhor, estes versos que te rezo
Ao contemplar a realidade em que vivo.
Maltido seja o sistema que não deixa sonhar os poetas
Nem permite dizer a verdade a quem pensa.
Serão seus dias de luto e de lamento,
Porque matou no Homem o mais digno.
Maldito o sistema que não pratica a justiça
E persegue e tortura e encarcera a quem anuncia.
Terá que justificar sua conduta ante a história
E não encontrará nenhuma palavra de defesa.
Maldito seja o sistema que só procura a aparência de grandeza
Quando estão morrendo de fome os homens nas suas fronteiras;
Do mesmo modo que progrediu cairá,
Porque construiu seus alicerces
Sobre corpos vivos e sangues inocentes.
Maldito o sistema que tenta matar no homem a dimensão de transcendência
E coloca no seu lugar o “deus dinheiro” , o “deus sexo”, e “deus progresso”,
Destruir-se-á por dentro irremissivelmente,
Porque o coração do homem foi bem feito
E ninguém pode matar em nós
Esta sede de infinito que nos queima.
Feliz será, porém,
O homem que bebe água na fonte da praça junto ao povo,
Não terá motivos para se envergonhar de nada,
Nem terá que baixar seus olhos 
Ante qualquer homem honesto.
Feliz o homem que a força de interiorizar 
Se fez livre por dentro
E não se importa já com a denúncia dos fortes,
Serão seus dias como o trigo da terra.
Cheios de sol e esperança partilhada
E o seguirão os povos da terra.
Feliz o homem que não assiste a reuniões importantes
Nem acredita nos discursos do governo;
Feliz o homem que assim pensa,
Porque terá sempre tranqüila a sua consciência.
Mesmo que sofra a incompreensão e até o desprezo.
estou contaminado de radioatividade



Bem-aventurado o homem que não segue as
          consignas do Partido
não frequenta seus comícios
não se senta à mesa com gangster
nem com os Generais no Conselho de Guerra
Bem-aventurado o homem que não espiona seu
          irmão
nem delata seu colega de colégio
Bem-aventurado o homem que não lê
          anúncios comerciais
nem escuta suas estações de rádio
nem acredita em seus slogans.







ORAÇÃO POR MARILYN MONROE

         Trad. de Antonio Miranda


Senhor
recebe a esta moça conhecida em toda parte pelo nome de Marilyn Monroe
mesmo que esse não fosse seu verdadeiro nome
(mas Tu conheces seu verdadeiro nome, o da pequena órfã violada aos 9 anos
e da empregadinha de loja que aos 16 anos já queria se matar)
e que agora se apresenta diante de Ti sem maquiagem
sem um Agente de Imprensa
sem fotógrafos e sem dar autógrafos
solitária como um astronauta diante da noite espacial.

Ela sonhou quando menina que estava nua numa Igreja (pela versão do Time )
ante uma multidão prostrada, com as cabeças no chão
e tinha de caminhar pé ante pé para não pisar nas cabeças.
Tu conheces nossos sonhos melhor que os psiquiatras –Igreja, casa, cova são a segurança do seio materno
mas também algo mais que isso...
As cabeças são os admiradores, é claro
(a massa de cabeças na escuridão debaixo do facho de luz).
Mas o templo não são os estúdios da 20th Century Fox.
O templo – de mármore e ouro – é o templo de seu corpoem que está o Filho do Homem com látego na mão
expulsando os mercadores da 20th Century Fox
que fizeram de Tua casa de oração um covil de ladrões.

Senhor
neste mundo contaminado de pecados e radioatividade
Tu não culparás tão-somente a empregadinha da loja.
Que como toda empregada de loja sonhou ser estrela de cinema.
E seu sonho tornou-se realidade (mas com a realidade do technicolor).
Ela não fez senão atuar conforme o script que lhe demos
- O de nossas próprias vidas – E era um script absurdo.
Perdoa Senhor e perdoa-nos a todos pela nossa 20th Century Fox
por esta Colossal Superprodução em que todos nós trabalhamos.

Ela tinha fome de amor e lhe demos tranqüilizantes,
para a tristeza de não ser santos, recomendamos-lhe a Psicanálise.
Lembra-te Senhor de seu crescente pavor à câmera
e o ódio à maquiagem – insistindo em maquiar-se em cada cena –e como foi se tornando maior o horror
e maior a impontualidade nos estúdios.

Como toda empregada de loja
sonhou tornar-se estrela de cinema.
E sua vida foi irreal como um sonho que um psiquiatra interpreta e arquiva.

Seus romances foram um beijo com os olhos fechados
que quando se abrem
descobre-se que foi sob os refletores
e apagam os refletores!
e desmontam as paredes do aposento (era um set cinematográfico)
enquanto o Diretor se afasta com sua caderneta porque a cena já foi filmada.
Ou uma viagem de iate, um beijo em Cingapura, um baile e no Rio
uma recepção na mansão do Duque e da Duquesa de Windsor
vistos na TV de um apartamento miserável.

O filme terminou sem o beijo final.
Foi achada morta em sua cama com a mão no telefone.
E os detetives não souberam a quem ela ia chamar.

Foi como alguém que discou o número da única voz amiga
e ouviu apenas a voz de uma gravação que diz: WRONG NUMBER.
Ou como alguém que ferido pelos gangsters
estende a mão a um telefone desligado.

Senhor
quem quer que tenha sido quem ela queria chamar
e não chamou (e talvez fosse ninguém
ou era Alguém cujo número não está na Lista de Los Angeles)
atende Tu ao telefone!


POR QUE ME ABANDONASTE?
Salmo 21

Meu Deus meu Deus por que me abandonaste?
Sou uma caricatura de homem
          o desprezo do povo
Riem de mim em todos os jornais

Rodeiam-me os tanques blindados
estou sendo apontado pelas metralhadoras
e encerrado em cercas de arame farpado
as cercas eletrificadas
Todo dia me fazem chamada
Tatuaram-me um número
Fotografaram-me dentro da cerca
e é possível contar meus ossos
          como numa radiografia
Levaram-me todos os documentos de identidade
Conduziram-me nu ante a câmara de gás
e se compartiram minhas roupas e meus sapatos
Grito pedindo morfina e ninguém me ouve
grito sob a camisa de força
grito a noite inteira no asilo de doidos
na sala dos doentes incuráveis
no corredor dos enfermos contagiosos
no asilo de velhos
agonizo banhado de suor na clínica do psiquiatra
afogo-me na câmara de oxigênio
choro na delegacia
no pátio da prisão
          no quarto de torturas
                   no orfanato 
e ninguém se aproxima para não se contagiar

Mas eu poderei falar de Ti aos meus irmãos
Eu Te elevarei na reunião de nosso povo
Ecoarão os meus hinos no meio de um grande povo
Os pobres terão um banquete
O nosso povo celebrará uma grande festa
O povo novo que vai nascer



SALMO I


VI HÁ MUITOS ANOS

Eu vi há muitos anos, de um ônibus, na Virgínia ou Alabama
uma menina rosada com calça azul
em cima de uma escada, colhia maçãs
(a mãe a chamava para dentro)
e outra menina, irmã, calça azul, 
pintava de branco a varanda da casa
E olhavam para o ônibus que passava e acelerava
O tempo passou como o ônibus da Greyhound
Mas ficou, apesar dos anos, a pintura fresca da varanda
O pincel pingando
A mão na maçã
Faz anos, uma manhã, Virgínia ou Alabama, 
Não me lembro o estado.

(tradução minha)


3 comentários:

  1. Poesia...alimento da alma. Descanse em paz poeta.

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  2. Espetacular! Somente agora, graças ao jornalista-professor Rondon de Castro, "conhecendo" este cérebro e coração...de gigante! Obrigada!!!!

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  3. Comovente homenagem! Versos poderosos como são as emoções, que teimamos em esconder, e elas ressurgem de outras formas. Gratidão por compartilhar.

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