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quarta-feira, 4 de março de 2020

Cultura como tarefa da esquerda

"Ela virá, a revolução, e trará ao povo, não só direito ao pão, mas também à poesia."
Leon Trotsky

Lênin: Cultura e revolução cultural. 

Ainda sob o impacto da morte do poeta nicaraguense Ernesto Cardenal - um luto íntimo, tranquilo e até poético - fiquei imaginando o quanto a leitura, poesia e literatura é uma obrigatoriedade na vida de qualquer pessoa que se reivindica da esquerda... Me dizem, quantos da esquerda não foram analfabetos?  Sim, mas me parece que sempre lutavam não só pela transformação do mundo e pela justiça, mas também pela própria construção pessoal...e isso passava necessariamente pelo acuramento da sensibilidade diante da arte, do belo e da verdade. Além disso, a cultura que falamos é aquele conhecimento que ultrapassa a necessidade do dia-a-dia e nos transporta para fora da zona de conforto e nos faz pensar em tornar nosso mundo melhor. E que tipo de homem não quer melhorar seu mundo? Um trabalhador em alguma barranca do rio amazonas possui informações sobre a vida na floresta o suficiente para mantê-lo vivo na lida diária com a natureza, sua interação coletiva, social, ao participar de danças - carimbó, por exemplo, amplia e potencializa seu conhecimento.  Não mais se trata da própria vida, mas da vida comum, das condições que a Amazônia oferece para sua existência no coletivo, na comunidade.  A arte nos joga à buscar o mundo que nos cerca, a cada manifestação.  Se somos analfabetos, não significa que não temos acesso à cultura ou à arte, mas que mantemos mergulhados dentro do limite que o próprio cidadão se impõe.  Se ele não rompe com os limites que o cercam pela banalidade cotidiana, ele absorve o discurso cultural, a arte e o conhecimento de outrem, que chega a ele no papel de verdade absoluta
Há os que rejeitam o conhecimento....os da esquerda tem como obrigação adquiri-la ou prezar a busca pelo mesmo.  Se falamos da esquerda, falamos de um mundo novo, sem explorados ou exploradores...onde não há lucro como meta, mas a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, mesmo daqueles que sequer sabem o que são direitos fundamentais como educação, saúde, alimentação. Para consegui-los, o conhecimento se engendra na arte, na busca de melhorar a cada geração humana seu acesso às manifestações humanas.  Um homem famélico, desempregado, abandonado, enfermo, excluído não tem a cultura como prioridade.  Parca e curta a vida de um homem que apenas pode se dedicar ao trabalho ou à busca do dinheiro mínimo para sua sobrevivência e de sua família..ou pior, quando confunde qualidade de vida com os bens de consumo. É a morte em vida enquanto respira ou caminha, se submete ao conhecimento daqueles que o exploram e valorizam o poder monetário como referência.  O homem somente é livre se tem acesso ao conhecimento, à arte e à cultura.  A arte sempre é o alicerce para a evolução humana, um degrau para não chegarmos à barbárie.

Ernesto ‘Che’ Guevara lendo no Congo em 1965.
Che: O último Leitor, de Ricardo Piglia

Sem dúvida, a esquerda tem a obrigação de primar pelo homem, é o seu objetivo, meta....por isso, o que a esquerda oferece sempre requer esforço, trabalho.  As letras não são apenas traços em uma folha de papel, os modelos de transformação se fazem pelo contato com a diversidade...ser um em muitos, ser tudo par ser pleno.
A arte da sobrevivência é confusa e até perigosa, confundimos a comodidade do que conseguimos com aquilo que precisamos...o capitalismo nos diz isso, nos impele a pensar naquilo que a classe dominante pensa, seus gostos musicais, vontades políticas etc.  O papel da esquerda é fundamentalmente, atuar para que o conhecimento se faça pelo acesso à arte, a sua diversidade, quebrando os limites do indivíduo e o trazendo à diversidade.  A direita, em si, por nos manter na ignorância através do controle da arte permitida, da cultura manipulada, impede essa diversidade e seu acesso àquilo que a ameaça.  A poesia, a pintura, a escultura são medidas pelo seu valor monetário, não por aquilo que pode acrescentar espiritualmente ao homem.  É isso que denuncia, por exemplo, o papel da igreja e das religiões institucionalizadas...é desse setor que aparecem as principais farpas contra a arte livre.  Arte - que entendo como as manifestações culturais - não é algo que necessariamente é bonito, harmonioso ou equilibrado...o papel é justamente de confrontar ideias, podendo encontrar reverberações positivas ou não entre os indivíduos.  A regra geral não é a aceitação, mas principalmente a experimentação...o efeito que essa ou aquela manifestação causa nas pessoas é que definirão sua permanência ou não no cotidiano.
Um outro ponto é que o marxismo discute a cultura como peça fundamental no entendimento da necessidade da luta de classes, logo, um instrumento para aplicação das teses revolucionárias para a transformação social.  Vejam bem, a arte em si não é revolucionária, mas um instrumento independente da direita e esquerda, mas somente a esquerda a enxerga como um caminho para a evolução humana... A direita a quer controlada e dirigida para a manutenção do sistema econômico vigente, dentro da zona de comodidade da busca pelo lucro.

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Trotsty: Revolução Permanente, Questão de Modo de Vida, Cultura e Socialismo

A esquerda, e falo sob o ponto de vista marxista, avalia a cultura como algo que surgiu da ação do homem em relação à sua convivência com o meio, em especial, a natureza, expressando-se nas relações comuns e nas ações que justificam sua vida...serve como um fator agregador de experiências de vida, de modelos e exemplos.  Não gosto de citar autores em um texto pessoal, não acadêmico, mas por concordar com ele e achar que me ajudará, menciono com minhas palavras a definição de Leon Trotsky, se não me engano no livro "Questões do modo de Vida", escrito no calor dos momentos pós revolução de 17.  Diz ele que a cultura seria aquilo que separou o homem dos animais, dando espaço para uma nova ideia de vida, em torno da acumulação de bens culturais e conhecimento agregado para enfrentar a própria natureza e superar sua fragilidade diante das intempéries.
De qualquer forma,  o próprio Trotsky defendia a cultura como instrumento para a conscientização política da população, dos chamados "sem-partidos", daquele segmento majoritário das sociedades que não adotam uma bandeira única, mas aquela que lhe parece conveniente politicamente, mas que - definitivamente - carregam em si a capacidade revolucionária de transformação política.  Pregou ainda que, após anos de domínio do czarismo sobre o proletariado, o nível cultural desses era muito baixo e, por mais que tenham explodido revolucionariamente, expurgado o poder dos senhores, carregavam em si a ignorância de uma cultura que indicasse o caminho da transformação, sobre o que fazer, o que transformar e para onde ir...  Uma cultura que os fizesse pensar em si como protagonista da mudança.  Enfim, para a esquerda, a chamada dialética tem de ser associada à cultura, à contraposição de ideias e a confrontação da arte, estética e gostos. Utilizar a dialética significa à esquerda a adesão sistemática ao mergulho no cotidiano cultural do meio onde atua.... é uma tarefa individual, pessoal, intransferível...necessária para a mudança do mundo e da vida.


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Trotsky: Questões do modo de vida, Literatura e Revolução, Cultura e Socialismo; Revoluçã

PS: vejam bem, a direita enxerga a cultura como uma mercadoria e, como tal, deve ter um valor monetário e atender a uma demanda do mercado. Dessa forma, um filme, peça de teatro e/ou um quadro não carregam em si seu valor artístico, mas aquele que o mercado estipula como "justo" a ser pago pelos consumidores.  Assim sendo, não é - para a direita - os motivos prioritários da cultura não são a formação de uma massa crítica, mas de consumidores...aqueles que podem acessar financeiramente o "produto" que, por sua vez, por toda a logística da criação até a exposição ao mercado, legitima o viés capitalista (logo, substitui a necessidade por cultura por opção comercial pela cultura) expresso na produção e viabilidade econômica.  Assim sendo, em um quadro de agressivo avanço da crise capitalista (no nosso quadro, fascista) , o mercado separa aquilo que é viável economicamente e exclui aquilo que resulta em prejuízo...dado que, no capitalismo, a ausência de políticas sociais inclui o menosprezo à cultura (encarada como "prejuízo" financeiro), o direito da população à educação através da arte é entregue para a exploração da iniciativa privada, aquela que prioriza, que vive do lucro.... 

2 comentários:

  1. A inversão de valores é tão clara. Talvez se o acesso a cultura e a arte fosse mais fácil... Mas vale, como você mesmo diz, pensar o que é cultura e o que é arte para cada indivíduo.

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  2. É certo, Fernanda. A cultura é antes de tudo um direito humano, a garantia de que o cidadão tem acesso a informações que o possibilitem ter participação política... Transformá-la em mercadoria alimenta sua natureza voltada àqueles que tem poder aquisitivo e aqueles que estarão excluídos da crítica e das ideias.

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