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quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Sobre o deserto que afasta o meu tédio






O autor de Beau Geste: Percival Christoffer Wren

Faz calor, muito calor...suo em bicas.  Acho que, por isso, lembrei-me de um livro que li quando ainda garoto.  Eu o procurei nas prateleiras há algum tempo e não o encontrei...guardo esses livros de feliz lembrança.  Uma obra que, se bem me lembro, somente li uma vez  e, definitivamente, deixou marcas.  É o Beau Geste, de um escritor gringo, PC Wren, que o produziu na década de 20... Parece que não foi apenas a mim que teve algum impacto, porque olhando para comentários na internet, que se dividem entre o livro em si e os filmes que surgiram da obra, me aponta que a história, a narrativa, a emoção deixou marcas.

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A aventura de vida nas areias escaldantes do Saara

Basicamente, irmãos ingleses, adotados por uma família em decadência financeira, são vítimas do furto de uma safira chamada -  hmmmmmm - "Água Azul" ou algo semelhante..o objeto que, certamente livraria a todos da miséria.  Os irmãos, suspeitos e sem álibi  para comprovar a inocência, desaparecem e se alistam na Legião Estrangeira francesa, refúgio de fugidos do passado, onde não se cobra nada anterior ao recrutamento, nem mesmo o nome.  Os três assumem para si o furto e partem para o Marrocos (acho)...  O nome Beau Geste ("bom Gesto") é adotado pelo mais velho (tenho dúvidas, mas em uma das filmagens, o nome é adotado na própria Legião. Não se trata de spoiller, pois quero mais é que me relembrem o que passou.
O livro foi escrito em 1924 e a história se passa em 1906, durante as guerras coloniais. Corre a lenda que o autor, Percival Christofer Wren, foi um legionário, dada a descrição detalhada dos rituais e do ambiente da Legião. Agora, certamente diria que a razão está do lado dos tuaregues que atacam, atacam e atacam os franceses nas areias escaldantes do Saara. Sequer cogito alguma simpatia aos membros do exército colonial. Mas...  Na literatura, enxergo apenas a narrativa e o caráter dos irmãos em assumir o furto e poupar os demais da acusação, da pecha de ladrão, a coragem de se exilar e de se submeter à violência do sargento-major Markoff.  Este, um militar de carreira, interrompida por ter sido traído em algum momento no passado por sua tropa e jogado na Legião para se reabilitar diante do exército francês e de sua própria vergonha. Transfere aos subordinados sua raiva, tornando suas vidas entregues ao exército mercenário um inferno... Um sofrimento merecido, já que o passado que os levou até ali os fizeram merecedores de cada dor, de cada morte.

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Na versão cinematográfica de 1939, os Geste 

O que me passa pela cabeça são as razões dessa história ficar martelando a imaginação de muitos...e muitos mesmos acabaram se alistando na Legião Estrangeira.  Conheci até um brasileiro que passou apenas a fase de treinamento e se recusou a assinar o contrato de cinco anos...não sei mais dele, me contou sua história bêbado e a contava para quem o quisesse ouvir.  Até eu me alistaria, não para fugir do passado, mas para começar de novo a vida, em um quadro de aventura, de ação, que entusiasma parte dos jovens. Algo que me garantisse, se sobreviver, mais histórias para contar, para dar sentido à vida  Até recebi um retorno do consulado francês (se não me engano, ficava no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista) dizendo que até os 40 anos eu poderia ser recrutado, a passagem até território francês seria por minha conta e...não me lembro o resto.  Não fui...preguiça talvez, incompatível com o espírito do legionário. Preferi o jornalismo.
Acho que, agora, com a aposentadoria se mostrando no horizonte de meses, a história de Beau Geste volte ao meu cotidiano: sentarei e vou esperar a morte?  Assim como estava aos 20 anos, quando um mundo se descortinava à minha frente de forma confusa, creio que a aposentadoria também o faz...que caminho tomar? Ninguém, em sã consciência, espera que o tédio o assalte...e que será vítima de um infarto, na poltrona, diante da TV ligada...vivendo a aventura dos filmes da sessão da tarde.. Lembro da história de uma mulher que somente percebeu que o marido havia morrido na poltrona quando esse não mais levantou o braço para cumprimentá-la quando (ela) saia e/ou entrava em casa.
Estou planejando minha mudança de vida...já tive minhas aventuras à la Beau Geste, não tão profundas e perigosas...mas que me bastaram para ter meus remorsos e sentimentos contraditórios com relação à natureza humana.  Sobrevivi a mais essa fase, a de que somos produtivos para dar lucro ao patrão, aos ricos e à elite predadora desse país.  Sou correntista de bancos e as instituições bancárias certamente tiveram um lucro imenso perto daquilo que conseguia para mim.  Fiz muita coisa boa e construtiva...para sobreviver, fiz coisas condenáveis para mim mesmo.  Vejo alguns colegas: já passaram do tempo para aposentar e continuam trabalhando....a mesma rotina desde que passaram no concurso público e dia-a-dia, passeavam pelos corredores da universidade...subiam as escadas.  Não sabem viver sem aquilo que foi feito apenas para ser seu emprego...não vida.  Morrerão sem isso.  Prefiro, para mim, pensar em uma última mudança, a derradeira entre a vida e o final.  Tenho o quê, uns 30 anos de vida ainda...talvez...um tropeção, um tumor ou um tiro e pode acabar hoje ou amanhã.  Tenho histórias para contar ou ser lembrado através delas? Sim, tenho....algumas que apenas os protagonistas que a vivenciaram e eu mesmo, vejo como história.  Lembro da história de um repórter fotográfico que perseguia sua foto, aquela que o representasse...e quando teve a oportunidade, não clicou...a razão? Aquela imagem era somente para ele, ninguém mais. Era a história de seu Santo Graal, da busca de algo que nunca se encontrará na rotina que se firma na lida pela sobrevivência, para cuidar da família, das contas, das cobranças sociais etc...

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Beau Geste, de 1966: vivendo o inferno para criar e viver histórias

Acho que é isso que as areias escaldantes de Beau Geste nos traz:  a expectativa de fazermos algo que nos torne significativos ao mundo...algo dizendo que não passamos a vida em brancas nuvens...
Como repórter do Diário do Rio Claro, creio que em 1984, entrevistei um mendigo, um caminhante, chamado Diego Viegas...já era velho, barba crescida e imundo, cheirava mal... Ele se auto-denominava "vigilante da Pátria" .  Ele se propôs a ... caminhar, andar pelo país com uma pequena bandeira brasileira e "vigiar" o pais...doquê e de quem? Não me lembro se me deu uma resposta.  Acho que não.  Levava um livro de atas consigo... a cada cidade que passava, ia até o jornal para registrar sua passagem e na agência local da Caixa Econômica Federal, para ter carimbo e assinatura oficial de seu "trabalho".   O mais interessante dessa história é que havia um garoto que varria o chão da redação, cujo nome não me recordo, que - em meio à entrevista com Diego - não saiu das proximidades para ouvir o entrevistado... em dado momento, sentou-se conosco junto à mesa, abraçado ao cabo da vassoura, atento à história.  Aquilo o interessou.  Uma história de vida mexeu com a curiosidade daquele garoto que estava na época de "fazer" ideias...se ele foi viver suas aventuras eu não sei.  Espero que sim, que ele também tenha histórias para contar.  Que ele possa dizer aos outros sobre a bala que QUASE o atingiu e o susto imenso que teve.

Ainda tenho um amigo, bom amigo, que tem uma loja no comércio que anda aos tropeços. Cada mês é um sacrifício financeiro... sempre me diz: "deixei a vida me levar" suspirando a possibilidade que teria tido se tomasse outras decisões na sua existência. Não está mal das pernas, está até remediado para a cerveja de fim de semana, mas pesaroso com seu próprio caminho.  Quantos não estão assim?
Está pensando em se aposentar...
Como dizia, as colinas de areia fervente que cercam a fortaleza de pedra escondem os perigos de nosso caminho. Na verdade, não precisamos ir até eles...eles nos atingirão uma hora ou outra.  Penso ser melhor decidirmos quando enfrentarmos o inevitável.  Podemos ou não optarmos por uma opção de vida, mesmo que isso signifique a arriscarmos.

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